No cerne das discussões sobre o que significa criar, viver, criticar e, acima de tudo, sentir, a inteligência artificial entra de forma avassaladora. Ela molda hábitos, simplifica trabalhos e, sim, até produz arte. Mas surge a pergunta inevitável: em que ponto deixamos a técnica sobrepor-se à expressão genuína da alma?
Arte, antes, era rebeldia. Era o grito sufocado de quem vive à margem. Estava nos trovadores, onde a visão de mundo fluía em metáforas, ou nos teatros populares que desnudavam as violências estruturais. Canções carregavam histórias e expressavam verdades que escapavam à linguagem comum. A arte era emoção crua, pulsação humana, um reflexo das dores e esperanças da sociedade.
Mas, com o tempo, a técnica tomou o trono. A simetria impecável, a perfeição formal, passaram a valer mais do que as cores da diversidade ou a subjetividade do “lugar de fala”. O domínio instrumental e os estudos acumulados tornaram-se selo de legitimidade. E agora, o que a IA faz? Técnica, estrutura e formalidade são seu forte. Relatórios em português perfeito, referências bibliográficas irrepreensíveis? Tudo isso é jogo fácil para ela. Mas e a alma da criação?
Jamais uma inteligência artificial será capaz de capturar o lamento pintado nos muros da cidade. Ela não tem lugar de fala, não carrega feridas nem memórias. A vivência humana, com suas dores e esperanças, suas contradições e intensidades, está além do alcance de qualquer algoritmo. A IA pode replicar, imitar, otimizar, mas nunca viver.
A questão que nos cabe hoje é: o que decidiremos preservar? Não é o português impecável dos relatórios, tampouco as referências bibliográficas. São as narrativas que nascem do “lugar de fala”, da crítica de quem sente e vive, das dores que se transformam em gritos criativos e em arte. A arte verdadeira não pertence à técnica, mas à humanidade. Que ela nunca seja silenciada.
Leonardo Duart Bastos
Presidente do CEI Campinas