O garoto sofre violência doméstica e não é atendido por nenhum serviço. Mora ao lado de um CRAS – Centro de Referência da Assistência Social e nunca recebeu qualquer tipo de assistência.
A polícia, nada amiga, matou seu melhor amigo por acidente. Quem manda no seu bairro é o tráfico, em sua rua tem duas ou três biqueiras de venda de drogas.
Na escola, os problemas de casa povoando sua cabeça tornam insuportável as quatro horas sentado, ouvindo uma professora desestimulada expondo aos seus alunos o quadrado da hipotenusa.
Até tem televisão em casa, mas é impossível assistir em meio às brigas constantes do pai, que faz uso abusivo de álcool desde que perdeu o emprego.
Com a mãe já sem condições nenhuma de lidar com tantos problemas, para ele a rua é a melhor acolhida e o álcool, diversão mais acessível do que Hopi Hari ou PlayStation para se divertir com os amigos. A maconha aliviava a tensão do dia a dia.
Com o rótulo de drogado por ter sido visto usando maconha por um professor, sofre bullying na escola e prefere não continuar mais estudando.
O impulso por novas experiências o levam a experimentar a cocaína e depois o crack.
Após conhecer o crack, a situação em casa começa a ficar ainda pior, com os pequenos furtos, brigas mais constantes e, ainda assim, não recebe qualquer tipo de ajuda.
No Centro de Saúde nem é mais atendido, porque sempre que comparece procurando atendimento com dor de dente, alergia ou gripe, está sob efeito de drogas e não é atendido, pois lá é considerado vagabundo ou marginal.
Assim é também no Pronto Socorro, para onde foi em uma Síndrome de Abstinência que entrou após dias consumindo álcool abusivamente. Lá recebeu soro e glicose e saiu andando trêmulo e alucinando por não ter sido atendido adequadamente, por o médico não saber dar os encaminhamentos adequados, fora um sermão inadequado e moralista.
Família desestruturada, vínculos rompidos, desorganizado socialmente, vai para a rua.
Então, temos o seguinte quadro: sem emprego, sem casa, sem atendimento pelos serviços que lhe são de direito, sem amigos, sem documentos, sem autoestima, humilhado, socialmente estigmatizado e dependente químico.
Quem pode ajudar esse individuo?
Uns gritam: “É dependente químico, então é Saúde!”
Outros: “Sem casa? Então é Assistência!”
Outros ainda: “Mexe com drogas? Chama logo a polícia!”
Poucos entendem que a droga é o sintoma de toda a desorganização social e a quebra profunda de significado do existir desse sujeito, uma consequente ruptura com a realidade. Que o que ele precisa não é uma internação que o prive mais ainda da vida que ele nunca pode ter com qualidade, nem remédios que só podem ser úteis para ajudar a superar os momentos de intoxicação e os quadros ansiosos, depressivos ou distímicos consequentes do uso excessivo de substâncias psicoativas.
Ele precisa mais que isso, precisa receber atenção integral, ser recolocado na sociedade, recuperar sua autoestima, ter seus direitos garantido e ter espaço para reconstruir o significado de sua vida, para poder se sentir gente, talvez como nunca tenha se sentido antes.
Não estou inventando nenhuma estória. Estes fatos são comuns, estão pelas ruas, em minhas conversas, que mostram que a dependência química é muito mais um sintoma da nossa desestrutura social do que consequência da existência de uma droga nova (drogas sempre existiram e duvido que um dia deixem de existir) ou de um problema de saúde. Se queremos oferecer um cuidado que faça diferença, que possamos ser com um olhar mais amplo sobre o sujeito, que possamos não ignorar seu contexto nem sua história.
Leonardo Duart Bastos
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